(em resposta a “CABELOS BRANCOS”, de Frei Betto)
Caríssimo Frei Betto,
Acabei de ler seu mais recente texto, “CABELOS BRANCOS”, que traz uma série de reflexões importantes. Seu olhar aguçado e perspicaz nos interpela sobre um fenômeno que não é exatamente novo, mas que agora salta aos nossos olhos.
Provocado pelo artigo de sua autoria, tomo a ousadia de fazer essa resposta. Quem sabe não posso também dar alguma contribuição para a questão que você nos trouxe?
Estivemos juntos algumas vezes ao longo dos últimos anos, em encontros e palestras. Tive a honra de conversar longamente contigo em um carro, a caminho do bairro de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, quando sua biografia foi lançada em uma comunidade no extremo da periferia da outrora Cidade Maravilhosa.
Frei Betto, entendo que sua indagação a respeito do envelhecimento das ideias é provocativa. Ora, somos discípulos de um prisioneiro político executado sumariamente pelas forças de um império há 2 mil anos. Se as ideias que levaram Jesus à cruz tivessem morrido no Calvário, não estaríamos aqui, não é mesmo?
Da mesma forma, as ideias de Marx não morreram com a derrubada do Muro de Berlim. Basta vermos nas redes digitais (que não são nada sociais, diga-se) o trabalho feito por jovens como Sabrina Fernandes ou o Chavoso da USP. Olhemos para a experiência de videocasts como o Podpah… A gente sequer consegue fazer algo semelhante ou mesmo ser convidado por esse pessoal que tem canal aberto com as juventudes.
Sou exatamente três gerações mais novo que o senhor. No meio do ano completo 50 anos e meus cabelos já estão grisalhos. Arrisco-me a dizer que minha geração pegou o finalzinho daquela época áurea das Comunidades Eclesiais de Base, da Teologia da Libertação, daquela grande geração de bispos comprometidos com as causas da vida, como dizia Pedro Casaldáliga.
Na Igreja, fui testemunha ocular do ponto de virada destes tempos de esperança primaveril para o deserto frio de uma Igreja autorreferencial. Pouco a pouco foi censurando, punindo quem apoiava as lutas populares e se retirando ela mesma dessas lutas. As milícias da Zona Oeste agradeceram.
O catolicismo perdeu capilaridade social no Rio de Janeiro. Eu vivo aqui desde que nasci. A cidade, tão pujante em sua cultura, sempre foi um terreno muito degradado em termos eclesiais.
A arquidiocese carioca sediou a experiência-piloto da restauração romana, do clericalismo, do reacionarismo que caracterizou o projeto da “volta à grande disciplina”, como bem advertiu o saudoso João Batista Libânio. Quarenta anos mais tarde, o que era um experimento diocesano tornou-se a regra na maior parte do Brasil.
Tendo passado pela Pastoral da Juventude nos anos 1990, minha fé libertadora e meu corpo sentiram o peso da instituição eclesial quando o nosso modo de ser Igreja Jovem naquele tempo foi perseguido e proibido. Vivi algo semelhante na minha vida profissional, ao passar mais de duas décadas na educação católica. Neste caso até mais grave porque era perpetrado por gente de discurso progressista e libertador.
Ou seja, o cancelamento e o assassinato de reputação não é monopólio do neofascismo nem coisa recente criada pelo fundamentalismo cristão no Brasil. Entre nós, ele sempre esteve presente de alguma forma, talvez não fosse tão agressivo e acintoso como é hoje.
Evidentemente que essa coisa fascistóide precisa ser denunciada e combatida, mas anda difícil dizer algumas verdades incômodas em certos círculos do campo progressista. Tem sido essa a experiência que nós, professores da rede federal, temos vivido porque resolvemos entrar em greve, quando somos acusados de querer prejudicar o governo.
Nossas disputas internas, nossos expurgos e fratricídios por vezes são tão ou mais dolorosos que os ataques da extrema-direita. Será que os mais jovens já não perceberam isso e o quanto é difícil ser escutado pelos “cabeças-brancas” a ponto de preferirem simplesmente não estar?
Em um tempo marcado pelas doenças da alma, para quê adoecer onde você deveria alimentar a esperança? Tem sido melhor ficar e lutar nos territórios. Ação local para pensar global. Talvez um primeiro exercício nosso de revisão de práxis fosse escutar mais do que ter algo a dizer.
Aqui no Rio tenho sido chamado para falar em alguns lugares também. Seja na Baixada Fluminense, ou em assessorias para o CEBI ou para o Movimento Fé e Política. Não falo para milhares de pessoas como o senhor, mas em grupos menores onde tenho falado a presença raramente é jovem.
Desde antes da pandemia observo o mesmo fenômeno indicado em seu texto. Onde estão nossos jovens? Eu me refiro à turma da PJ, das Comunidades de Base, catequistas, agentes de pastoral… Mas esse não é um problema isolado do catolicismo progressista.
Semana passada, fui ver o José Dirceu que fez uma fala no auditório do Sindicato dos Bancários, no Centro do Rio. Estava bem cheio, deveria ter umas 250 pessoas. Pois bem, eu com quase 50 anos deveria ser um dos vinte mais jovens no evento. Nos sindicatos, não é diferente. Talvez a exceção seja apenas o MST.
Essa parafernália digital que nos cerca também roubou a ideia de futuro, de amanhã. Tudo é *aqui e agora*. O que aconteceu há meia hora pode ter ficado envelhecido e ultrapassado. Soma-se a isso mudanças no mundo do trabalho que precarizam os raros empregos formais e a condição de abandono da escola básica.
Diante dessa realidade, como sonhar com um amanhã melhor? Para muitos jovens de camada popular, o futuro inexiste. Sem futuro não há utopia. Resta matar um leão por dia para ter o que comer e o que vestir.
Vemos poucos jovens nestes eventos em que estamos presentes porque a moçada tá no corre da vida defendendo um qualquer, como eles dizem. Não há mais uma comunidade de fé ou um movimento social que financie essas experiências. Quem o fará em um mundo social reduzido a duas instituições – família e Estado –pelo neoliberalismo? E um detalhe: a maioria destes jovens não são católicos.
Não deveríamos pensar que estamos em uma bolha geracional formada por nós mesmos ao longo do tempo? Não estaríamos nós hermeticamente fechados em nossas verdades e metodologias a ponto de não conseguirmos mais escutar os mais novos? Queremos ceder o protagonismo às novas gerações?
Para não dizer que tudo são espinhos, vejo alguns sinais de esperanças. Aqui no Rio de Janeiro, todas as vezes que evangélicos progressistas promovem debates e encontros, há uma grande quantidade de jovens muito envolvidos com a luta por uma sociedade justa.
Os dois últimos em que estive, organizados pelo ISER, tinham esse perfil. Não valeria a pena prestar atenção no que eles – os evangélicos progressistas – estão fazendo para entender onde estamos errando?
Vale também ressaltar o bonito diálogo feito por Marcelo Barros e Rose Costa com jovens muito comprometidos na organização do Encontro de Juventudes e Espiritualidades Libertadoras (ENJEL). Na preparação de seu próximo evento, uma coisa me chamou a atenção: a programação é toda feita a partir de rodas de vivência e de conversa.
Diferentes de outros formatos a que estamos acostumados, onde apenas vamos ouvir muita coisa boa, mas de forma passiva. Ao contrário, este encontro propõe uma metodologia baseada no diálogo e na escuta e, sobretudo, oferece protagonismo aos jovens, algo que ainda se resiste muito muito em dar em certos ambientes.
Precisamos sair do planalto e descer para a planície das juventudes. Ou se preferir, sair dos centros e partir para as periferias, sair do asfalto e subir os morros, entrar nas favelas onde estão os jovens com quem queremos dialogar, se de fato desejamos esse diálogo e suas consequências.
Afinal, como bem o senhor lembra, a cabeça pensa onde os pés pisam. Será que estamos pisando os mesmos terrenos das juventudes?
Frei Betto, finalmente peço que me perdoe se lhe pareço impertinente ao responder seu artigo. Não foi minha intenção. Receba como um diálogo que alguém de cabelos grisalhos dirige a alguém de cabelos brancos.
Um grande abraço,
*Jorge Alexandre Alves é professor do IFRJ e do Movimento Fé e Política.